sábado, 14 de abril de 2018

Socos. Minha costela.

Gail era apaixonada por cachorros. Quando passávamos o final de semana em casa, costumávamos acordar cedo no domingo pra ir até o Central Park em minha moto para aproveitar a manhã, geralmente não fazendo nada. Eu não fazia nada, para falar a verdade. Minha única missão era ser um observador poetizando sobre a beleza dela enquanto ela caminhava na grama, enquanto o sol refletia o brilho da sua pele palidamente linda, enquanto ela sorria assistindo as crianças brincarem com seus cachorros pelo parque, enquanto ela simplesmente era ela, sentada, observando o céu, "sendo linda", como eu costumava dizer. Enquanto ela olhava pra mim e sorria, como se aquilo fosse uma obra de um deus que eu refutava a existência, mas que poderia ser o único capaz de produzir um sorriso hipnotizante e maravilhoso, algo que parecia ter sido feito especialmente para mim, algo que eu admirava com estranheza de tanta perfeição que se revelava, de tanta harmonia e paz que meu coração se enchia ao observar cada curva dos seus lábios se abrindo e revelando seus dentes cor-de-marfim.

Hoje acordei cedo, troquei de roupa, tomei meu religioso café, desci até o estacionamento e liguei a moto. Eu partiria para o parque pela primeira vez sem ela. Eu não tinha mais que firmar os pés para ela subir na garupa. Eu não sentia mais seus dedos enfiados nos bolsos da minha jaqueta buscando abrigo do frio. Eu não sentia mais seus braços enlaçando a minha barriga, nem sua respiração quente beijando minha nuca. Eu não sentia mais nada, só um vazio.
Eu cheguei até o Central Park e observei as crianças, os casais, os cachorros, os freesbies voando, as bicicletas, as cestas de piquenique, eu via vida em tudo que vinha de fora. Eu não via nada que se conectasse comigo. Eu não via nada ao meu lado. Eu não via nada dentro de mim, só sentia. Sentia como se o som dos pássaros, das crianças rindo e das pessoas conversando fossem zumbidos irritantes, como se a felicidade alheia dessas pessoas fosse uma ofensa à minha amargura sórdida e podre, quase que pestilenta ao meu coração e ao sentido da minha existência. Como se tudo tivesse perdido o sentido por fazer tanta falta aquele pedaço de mim. Como se eu estivesse nu, não de roupas, mas de sentido para estar ali.
Eu insistia em frequentar os lugares que eu costumava ir com ela como um ritual pra tentar achar que minha companhia era o suficiente, em pensar que eu podia existir sem ela. Não, não existia mais Duncan sem Gail. Eu abri meu peito, arranquei meu coração violentamente e depositei no peito dela. Eu achava que detinha seu coração e a chave do meu próprio peito. Nenhum coração entra mais nesse peito que arde, nesse peito morto-vivo. Morto por não sentir, vivo por doer. Esse dilema me era estranho enquanto doía, me era familiar enquanto vazio. Mas acima de tudo, inóspito. E o meu coração? Provavelmente estaria jogado em alguma viela suja perto do Brooklyn, longe demais pra ser achado, sujo demais pra ser reconhecido.

São quase seis meses sem ela. Me machuca tanto quanto no primeiro dia, me sangra ao ver que ela conseguia fugir disso e eu não, que pra ela há vida, e pra mim solidão. Que eu estava preso a mim mesmo e à lembrança dela, e ao pedaço que faltava em mim. A solidão que por tanto tempo foi minha opção, hoje em dia era minha sina, minha alucinadora prisão. Ela amava cachorros, mas o calor que eu tinha era de saber que a Cleo estaria em minha cama e ronronaria ao sentir meu corpo inerte se jogando contra o colchão e encontraria aconchego, assim que abandonasse o cobertor e caminhasse em direção a mim. Ela já estava enjoada e enojada de me ver chorar, provavelmente. Já eu, não.

Cya.

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