quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Justo eu.

Por recomendação de Vince e insistência de Andrew, acabei aceitando voltar a me encontrar com o Dr. Leonard. Por mais que eu me achasse um caso perdido, eu devia isso aos dois. Em partes, por sua preocupação comigo, afinal eu visivelmente estava piorando exponencialmente desde que Gail partiu. Por outro lado, era meio que um pouco pra alimentar uma certa vingança por eu sempre força-los a procurar um psicólogo quando algo não ia bem, apesar de sempre encaminhá-los aos meus melhores colegas.
O Dr. Carl Leonard foi um dos meus melhores professores na faculdade, e um dos meus preferidos, diga-se de passagem. Ele cobrava mais de mim do que eu pensava poder oferecer, embora ele dissesse que apesar de muitos dos meus companheiros de sala e dos alunos que ele já tivera ensinado tivessem tantas aptidões técnicas quanto eu, poucos tinham a minha sensibilidade e empatia, mesmo que eu não reconhecesse da mesma forma que ele - e muito menos acreditasse naquilo.
Desde que me formei, ele sempre aceitou me ver para batermos um papo descontraído quando algo não ia bem comigo, e por mais que não cobrasse o atendimento, eu preferia que ocorresse de maneira formal. Uma formalidade da qual eu já estava familiarizado. Algo nos cabelos grisalhos ou na rigidez da sua pele morena castigada pela idade me enviavam uma certa tranquilidade paternal que tanto me fez falta durante os anos. Por mais que a carranca que ele apresentasse por trás dos óculos não fosse muito simpática, era um homem muito carismático quando se dava a chance de que ele falasse por cinco minutos.
Nossos diálogos sempre ocorriam de maneira leve, sobre o cotidiano, onde ele tentava burlar minhas defesas naturais e me manipular para que eu me abrisse. Eu gostava da maneira com que ele utilizava das metáforas e analogias para explicar as coisas e concluir algum assunto, era nossa maior semelhança e algo que eu aperfeiçoei assistindo-o. Mas naquele dia em particular, ele se demonstrou preocupado comigo e insistiu muito pra que eu falasse sobre como eu me sentia, de maneira geral. Não me senti como um papo entre dois psicólogos, nem entre dois amigos. Mas como uma criança de frente com algo intimidador. Como se eu me visse ali, encarando-me em busca de uma confissão.
Não refleti, não pensei. Apenas vomitei.
"Em suma, o que eu sinto é uma constante sensação de fracasso. E desde sei lá, meus quinze ou dezesseis eu planejo não passar dos trinta. Eu espero até lá ter feito algo de significativo positivamente, ou que sirva pra continuar me mantendo vivo ou pra ficar de legado. Você vai achar absurdo, patético, até exagero. Mas é como eu me sinto."
"E você vai fazer o que? Se matar, Duncan?" - Disse ele.
"Não vou fazer nada. Só estou falando como me sinto."
"Você não vai passar se você acabar se matando ou se ocorrer uma fatalidade, certo?" - Replicou.
"Viver, do ponto de vista filosófico, abrange muita coisa. Eu posso finalmente me render a ter uma vida medíocre e frustrada, ralar num emprego que eu não gosto pra deixar grandes corporações ou o Estado mais ricos. Abandonar qualquer resquício de sonho que eu tenha até lá, de objetivo, de motivação. E, tendo como base o que eu sinto hoje, duvido que eu chegue até lá. Aí, eu pretendo apenas existir.
Quando você vive, qualquer risco, consequência, premiação, conquista etc, faz tudo valer a pena. A vida demanda esforço. Quando existir se torna um esforço, é doloroso. Mas ninguém entende. As pessoas não ligam a empatia e a compreensão quando ouvem isso. Elas ligam um sentido anti-vitimista passivo-agressivo pra usar perguntas de respostas óbvias, como “por que você não faz nada sobre isso?”. Elas acham que quem se sente assim faz porque acha bonito. Ou pior: se sentem bem quando agem assim.
Elas não entendem que a própria cabeça vira uma prisão, de onde não tem pra onde fugir; algumas se matam, outras se rendem aos narcóticos naturais e sintéticos, outras aceitam se esforçar e transformar cada dia num exercício doloroso pra existir, mas a luz no fim do túnel não existe pra todo mundo. Infelizmente.
É por isso que eu evito falar como eu me sinto. Já tentei ter essa conversa com outras pessoas, e não vai ser você que vai me apresentar uma solução. Por mais que queira me dar uma solução pra isso.
No fundo, ninguém entende. No máximo elas tem pena - e eu odeio a sensação de que sintam pena de mim. Mas entender... Nunca conseguem.
E eu sei que você vai começar a pensar em mim como alguém perdido. Se nem eu faço por mim, quem vai fazer, não é? Minha credibilidade com você já caiu, provavelmente. Você começa a pensar que sou alguém que não vale o risco, um idiota que qualquer hora pode ter um lapso e vai se afogar na pia do banheiro.
Já estou há anos nessa. Foda-se o diagnóstico clínico de que eu sou depressivo desde os quinze, a vida inteira eu me senti deslocado. Utilizei das mais diversas formas pra me sentir melhor, me sentir alguém. Já ficou cansativo, entende?
Já gastei tanto tempo tentando achar forma naquilo que me bate pra ver se eu consigo bater de volta. E às vezes eu disparo uns socos no nada, mas essa coisa levanta cada vez mais irritada, cada vez me batendo mais forte.
Em suma - ou nem tanto - é isso. Entende porque eu não gosto de falar como eu me sinto?"
O timer da consulta apitou. Me senti aliviado por não obter resposta. Ele permaneceu em silêncio por alguns segundos, fitando o nada. Senti que fui agressivo. Não com ele, mas comigo. E ele percebeu.
"Nos vemos semana que vem?" Dr. Leonard despertou do transe, estampou um sorriso forçado e se levantou esticando a mão para um cumprimento de adeus. Assenti com a cabeça e alcancei sua mão. Me virei e ganhei a saída. Deixei o consultório me sentindo mais pesado do que entrei. Falar sobre mim é como engolir meu próprio veneno, fazia eu me sentir desesperadamente imune à psicologia moderna... Justo eu, que ironia. Caminhei um pouco pela calçada e acenei para um táxi. Pensei em passar meu endereço, mas exitei. Senti que precisava de algo mais leve agora. Leveza etílica, pra ser mais específico.
"Toque para o pub mais próximo, por favor!".

Cya.

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