sábado, 31 de março de 2018

"Crônicas da Depressão I", por Márcio Scheel.

"As pessoas que me conhecem sabem que me recuso a expor publicamente meus afetos mais reais. Sabem que os dissimulo, quase sempre, em ironia, uma forma de não levar o mundo a sério, e autoironia, um modo de não se levar a sério. De todos, talvez, o mais importante. Mas começo a compreender que as experiências que vivemos são essenciais, nao só para nós mesmos, mas também para o outro.

Faz algum tempo que venho atravessando esse território desolado da depressão. Faz algum tempo que me apavora - nem sempre, mas às vezes de forma dolorosa e incompreensível quase - a ideia de que não tenho mais qualquer controle sobre minha vida e minhas emoções. Há dias muito bons, semanas inteiras até, mas há outros que parecem uma estação no inferno, para lembrar Rimbaud. Nesses, a gente imagina, quando consegue, como é possível resistir tanto ao sentimento de absoluto abandono que nos cerca.

É difícil, nesses dias, não se dedicar a certos vícios que nos consolam ou nos iludem, como o álcool, por exemplo. Sempre gostei de beber, de ficar bêbado, mas raras vezes usei o álcool como uma saída fácil para os sentimentos mais desencontrados. Hoje foi um desses dias muito ruins; um desses dias em que cometemos o erro de procurar as saídas mais fáceis.

Não é fácil reconhecer que não se está sozinho, que a vida pode nos surpreender de vez quando, de que há sempre alguém do outro lado da linha quando mais precisamos, principalmente nessas horas em que tudo parece um edifício em chamas. E a gente lá dentro, tentando sair a todo custo, como nesses pesadelos infelizes, com a diferença de que não acordamos a tempo.

A depressão é insidiosa porque nunca podemos prever quando, de repente, ela vai fazer com que a gente beije a lona. Pode ser no meio de um trabalho, de uma conversa, caminhando sozinho, entre amigos e pessoas amáveis, nas quais nos reconhecemos e pelas quais nos sentimos acolhidos. Não é nossa culpa, nem das pessoas. Não há nada que possamos fazer sobre isso. Nao há responsabilidade, porque não é uma escolha. Só somos responsáveis pelas decisões que que tomamos conscientemente.

Noto que são raras as pessoas que se expõem, que falam abertamente sobre isso. Penso que se trata de um tabu. A sociedade, em geral, imagina que estar deprimido é simplesmente um sinal de fraqueza, uma debilidade de caráter, um vacilo do espírito. Isso porque fomos forjados sob a ideia de que o sucesso, a realização pessoal, a felicidade ou o amor dependem unicamente de nosso empenho, de nossa vontade, de nossa dedicação.

Não é verdade, porque nem sempre nossas melhores escolhas levam às melhores realizações. Nem sempre nos dedicamos a algo e nos encontramos de verdade no que fazemos. Nem sempre podemos estar felizes, porque a felicidade é uma abstração, um estado de espírito, nunca uma condição reconhecível. A felicidade é uma invenção de um mundo que nos consola com a ideia de que se fizermos hoje nossa cota de sacrifícios e de renúncias, amanhã vamos descobrir maravilhados a recompensa esperada. Nada pode ser mais falso do que isso. Nem sempre o amor depende de nossa vontade, de nossos afetos, de nossos desejos. Nunca, quem sabe. O amor é um encontro, não uma disposição, uma partilha consentida, não uma dádiva que entregamos ao outro.

É difícil entender tudo isso. E é muito difícil para mim, que sempre fui muito racional e autocentrado, que sempre imaginei que a razão é a justificação da vida e de quem somos, de que tudo pode ser explicado, compreendido, domesticado pelas ideias. Estive sempre enganado, em alguma medida ao menos. Nem tudo pode ser interpretado, definido, explicado. Algumas coisas só podem ser sentidas, vividas, experimentadas. E doer faz parte de quem somos, assim como amar ou ser feliz, doer não é ridículo, não é patético, não é irracional. É só parte de quem nós somos. A parte mais humana, talvez, de quem nós somos.

Por isso o que mais precisamos, num mundo que parece cada vez mais insensível e egoísta, é aprender a pedir ajudar. É contar com quem confiamos ou amamos, mesmo que não saibamos as razões pelas quais confiamos ou amamos. Não gosto, como disse, de expor publicamente minha vida, não gosto de dizer como me sinto, não gosto de imaginar que isso dê às pessoas uma ascendência sobre mim que me apavora, mas resolvi que, talvez, esse seja um lugar para que a partilha da minha vivência alcance outras pessoas igualmente a revelia dos próprios afetos.

Essas crônicas não são sobre a depressão, sobre o tratamento, sobre como eu me sinto, mas sobre as pessoas que estão perto de mim, que me estendem a mão, que me ensinam que o amor é o sentimento mais livre e gratuito que podemos devotar a alguém. Por isso, essa crônica, hoje, é dedicada a uma das pessoas mais bonitas que já conheci na vida, alguém cuja espiritualidade e desprendimento ensinam o altruísmo e a delicadeza, a dedicação ao outro e o amor desinteressado.

Hoje, um desses dias muito ruins, em que não sabia bem o que fazer ou a quem recorrer, escrevi para ela, que deixou tudo o que estava fazendo, a família, o marido, os amigos, para estar comigo durante três horas. Não para me dizer o que fazer ou como me sentir, não para me aconselhar ou para sugerir saídas mágicas e consolos fáceis, mas para me mostrar, com a simples presença dela, que tem sempre alguém do outro lado da linha, de que estar próximo é aprender a dividir igualmente o que em nós sofre e ama.

Essas crônicas não são sobre a depressão, são sobre os amigos essenciais que estão por perto e que nos querem bem, são sobre a gratuidade dos afetos que as pessoas nos dedicam sem esperar qualquer coisa em troca, são sobre essas figuras iluminadas, que nos apontam para onde ir com a delicadeza e o desprendimento dos que se devotam à amizade, ao amor, à verdadeira fraternidade. Essas crônicas são sobre os bons amigos que fiz e nos quais me reconheço cada vez mais.

Eu não tenho nenhuma foto com ela, curiosamente, apesar de ser uma das melhores amigas que já fiz na vida. Hoje, quem esteve por perto foi a Jessica Roberti, que veio até mim e que dedicou não a sua amizade, mas a sua companhia desarmada e sincera.

Essas crônicas são uma homenagem aos amigos. Os que sempre estiveram por perto, os que reencontrei, os que amavelmente descobri quando as coisas, eventualmente, pareciam perdidas.

Obrigado, minha amiga." - Márcio Scheel, no seu perfil pessoal do Facebook.

Eu não salvei o texto. Ele me salvou.
Cya.

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