segunda-feira, 14 de maio de 2018

Anjo.

Encarei meu olhar ébrio no espelho do elevador enquanto os números roletavam no painel digital. As pessoas costumavam me dizer que eu possuía um semblante sério natural - coisa que herdei do meu pai - e que não fazia jus nenhum ao meu comportamento palhaço, segundo as mesmas. Entretanto, sob efeito de bourbon, minha expressão soava mais como "amarrada", talvez esse seja o termo mais apropriado. Testas franzidas, olhos cerrados, cara de poucos amigos. Um perfeito reflexo da grande diferença entre os meus rotineiros pileques: A cerveja me deixava de bom humor, o whisky me deprimia. O final das canecas de cerveja me faziam amar os amigos com quem eu bebia; já no fundo de cada garrafa de whisky eu não encontrava as respostas, mas pelo menos encontrava alguns motivos pra aquietar minha mente das perguntas.
Assim que a porta do elevador se abriu, os raios do sol matutino já se derramavam pelo lobe. As luzes refletidas no chão claro machucavam os olhos de quem não havia dormido ainda. Tomei a direção da porta do meu apartamento, e quando finalmente o borrão escuro foi esvaecendo, dei de cara com uma figura de um anjo, que reagiu exatamente da mesma forma que eu, como um reflexo. Não sei se o efeito das luzes amarelas que a tornavam angelical ou se eram seus traços perfeitos e agressivos aliados àquele sorriso tímido que ela me lançou, causando, por ironia, um efeito diabólico na sua feição.
O tempo parou apenas por alguns segundos, não o bastante pra recuperar minha sobriedade enquanto eu a olhava, mas o suficiente pra parecer que eu tinha muito tempo pra conseguir refletir o quão encantadora era ela. Conforme minha visão se acostumava à luz, consegui ponderar sobre cada detalhe, em câmera lenta, como um comercial de televisão. Os cabelos cor de avelã, que desciam lisos pelas laterais da testa e levemente se rendiam às curvas de suas bochechas rosadas, até terminarem na altura do peito. Voltei meus olhos de novo às bochechas, que de maneira tímida tentavam esconder as delicadas curvas das laterais dos seus lábios, que se revelaram num sorriso tímido ao bobo que a encarava. Os olhos negros construíam uma simetria emcantadora com as sobrancelhas perfeitas e os cílios compridos, como se eu conseguisse sentir que, ao me olhar com aquela expressão firme, ela me despia a pele, os músculos e os ossos, enxergando diretamente o âmago da alma. Por fim, o sorriso foi se desfazendo e seus lábios grossos e fartos foram se descolando, enviando a mim a mensagem de que já era hora de despertar do transe e agir de maneira não assustadora. Pelo menos tentar, é claro.
Antes que ela dissesse algo, me propus a segurar a caixa que ela levava, tentando demonstrar certo cavalheirismo - e empatia, afinal quando li "livros" escrito em sua lateral, imaginei que estivesse pesado. Após apanhar a caixa de seus braços, me apresentei e tentei parecer simpático. Ela ofereceu um sorriso mais amigo dessa vez, se apresentando também.
Seu nome era Lorann Green e ela acabara de se mudar para o apartamento do Sr. Mumford, que estava vago há algumas semanas. Ainda havia algumas caixas para serem levadas pra dentro e me ofereci para terminar o trabalho. Quando depositei a última no chão, me ofereci para pagá-la um café. Imaginei eu que o dia dela seria longo e, levando em conta o quão cedo estava, ela precisava de alguma fonte de energia e eu precisava ainda expulsar o que restava do efeito do álcool e permanecer em pé por mais uma ou duas horas. Ela aceitou e, enquanto entrou para apanhar uma blusa, acabei abusando novamente da ironia dentro da minha cabeça: eu que me sentia vivendo num inferno constantemente, dessa vez seria vizinho de um anjo.

Duas quadras distante do nosso prédio, havia uma lanchonete que era um dos meus lugares preferidos no mundo todo. Desde os primeiros dias em que me mudei para o Premier, já me sentia um freguês querido dali. Não era muito grande, mas o Sr. Serj, com o atendimento e o carinho com que me recebia ali, fazia do lugar um dos mais aconchegantes que eu conhecia. Como se isso não bastasse, eles ainda tinham o melhor café das redondezas e só ali eu conseguia comer um Cheese Steak tão bom quanto os que eu comia em casa, na Filadélfia.
Depois de caminharmos até lá e escolhermos uma mesa, puxei a cadeira para que Lorann se sentasse e, tentando ser o mais afável que eu pude, pedi que ela me contasse sobre sua vida.
Talvez por ser psicólogo e já ter uma sensibilidade maior para conversar cara a cara com as pessoas, mesmo um "desconhecido" conseguia se sentir a vontade para conversar comigo como se fossemos próximos e nos conhecêssemos há tempos. Com ela não foi diferente. Após alguns minutos de conversa, onde ela parecia um pouco tímida e se escondendo por trás de alguns clichês, percebi nela uma vontade de desabafar algo. Ela havia ficado quatro meses em Lyon fazendo algumas especializações, aproveitando para visitar a terra natal de seus avós. Quando retornou para Nova York, acabou flagrando o seu noivo com outra no seu apartamento e acabou dando um fim em tudo, decidindo-se mudar dali, vindo parar até a porta ao lado da minha. Ela não foi abundante nos detalhes e eu, como bom recém-conhecido, não interpelei por mais informações.
Conversamos sobre nossos fracassos amorosos, sobre nossas bandas preferidas em comum, nosso amor por gatos e por café e a necessidade que ambos tínhamos de fugir da depressão em caminhos etílicos.
Comecei a minha história com ela num elevador me encarando, literalmente, num espelho e, ali naquela mesa, me senti olhando para um espelho também. Éramos tão iguais e ao mesmo tempo opostos. Ela era um anjo e eu um diabo, ambos vagando a mesma terra, o mesmo inferno, o mesmo céu.

Cya.

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