Logo após ter me formado na Brooklyn College em Psicologia, eu consegui uma vaga, graças às recomendações de alguns professores, no New York Presbyterian Hospital. Eu alternava meus turnos entre as unidades do Hudson Valley e do Queens, atuando na área de pesquisa e assistencialismo, principalmente com os pacientes dos setores de oncologia. Eu acabei escolhendo esse campo de pesquisa por um certa ironia: no auge das minhas crises de pânico, um dos meus maiores medos era a morte. Com a depressão, a morte virou uma das minhas maiores obsessões, como se eu ansiasse pela sua chegada e lutasse para atrasá-la ao mesmo tempo, formando um dilema doentio dentro de mim mesmo. E quem, leigo ou letrado, não associa essa maldita condição como se fosse uma das muitas faces da morte?
Dos meus amigos, sempre ouvi que eu tinha vocação para a psicologia, essa minha empatia e minha habilidade de persuadir as pessoas com sutileza e leveza ajudaram muito quando conciliei com as técnicas apropriadas, e o que me motivava mais era me sentir útil e capaz de ajudar pessoas que passavam por problemas parecidos ou tão piores que os meus - no caso dos pacientes de câncer e seus familiares. Não há nada pior que ser seu próprio inimigo, psicologicamente ou fisicamente falando.
Antes do que estou prestes a afirmar, preciso esclarecer que meu corpo é uma espécie de híbrido entre um bordel do século XIX e uma sala cheia de Juan Valdez: a metade que não era feita de bourbon, era feita de café. A referência não é boa, mas é apropriada, principalmente porque eu tinha um costume incomum de consumir whisky à luz do dia e café durante a noite. Uma das poucas vezes - pra não dizer a única - que tive uma leve consideração em levar em conta existência de deus foi que, tanto na unidade do Hudson quanto na do Queens, eu tinha um Starbucks praticamente ao alcance dos meus braços - ou das minhas pernas. Não que eu não gostasse do café que nós bebíamos no hospital, mas era no mínimo interessante ter uma fonte pra alimentar minha dependência química de cafeína.
Numa manhã quente atípica de abril, concluí meu ritual de parar a moto no estacionamento do campus um pouco mais cedo e caminhar até o Starbucks que ficava há duas quadras dali. Voltei vagarosamente apreciando a bebida e entrei meio desatento, divagando alguma bobagem. Ao ser alvejado pelos olhares de reprovação assim que bati meu cartão, me auto-fuzilei ao me lembrar da festa de despedida que faríamos pela manhã - que aliás, já estava em curso. Hoje era o último dia que Caroline Wazowski estava com a gente, uma das responsáveis pelo setor de pesquisa da minha ala. Não éramos os melhores amigos, mas ela era uma profissional competentíssima da qual nós sentiríamos falta, ela tinha conquistado um subsídio pra liderar uma equipe por alguns meses na Ucrânia, com um Dream Team de cientistas na área de genética, motivo esse pelo qual nos deixaria. Ela era querida por todos ali pela simpatia e a risada gostosa, mas nossa relação se tornara um pouco restrita ao profissional depois que eu acabei sabotando sem querer nosso curto relacionamento. Eu nem chamaria de relacionamento. Os óculos grandes, o cabelo vermelho - sim, ver me lho - o sorriso simpático e seu jeito tradicionalmente atraente eram um cartão de visitas pra qualquer pessoa que se sentisse bem ao lado de alguém que era puro carisma. Nós saímos algumas vezes para beber, pegar um cinema, ela acabou até indo em um show meu no Velvet's. Confesso que ela gostava mais de rock do que eu, talvez por isso eu tenha pedido desculpas tantas vezes por tê-la feito me aguentar cantando e arranhar a guitarra. No final da noite, fiquei bêbado e de certa forma "perdi" meus amigos pra ela. Mea culpa, eu era um pé no saco e ela era bem mais bonita e simpática. Aliás, eu ser um pé no saco foi o que fez com que eu a perdesse. Ora eu era uma compensação absurdamente exagerada de bom humor pra esconder a bagunça na que eu tinha na cabeça; ora eu era só um pé no saco. Ponto.
Caminhei por entre meus colegas, já rindo da minha cara de culpa, e a abracei. Ela tinha um sorriso nada surpreso revelando uma covinha tímida.
"Eu não tinha expectativas em você, pode ficar tranquilo."
Ainda bem que não. E ainda bem que a Srª. Morgan tinha ficado encarregada de trazer as delicatessen, diga-se de passagem. Alguém tinha que ter uma boa memória naquele departamento, e eu liderava o ranking dos piores.
Fiquei no meu canto degustando um bolinho, terminando meu café e observando a sala. As risadas, o bom humor, os jalecos brancos se misturando aos azuis, algo simbólico, metafórico. Todas aquelas pessoas amavam a vida, e amavam mais ainda a vida do próximo, abandonando logo cedo seus lares, certas vezes até tarde da noite, pra mostrar pra essas que elas tinham valor. Me sentia orgulhoso de que a hipocrisia não fizesse parte daquele grupo, esse amor pelas vidas alheias estendia-se aos colegas, não só aos pacientes. Assisti as pessoas abraçando-a, desejando a melhor sorte do mundo, nada que ela não merecesse, achava até que fosse pouco. Eu sentiria falta da risada dela.
Cya.
Numa manhã quente atípica de abril, concluí meu ritual de parar a moto no estacionamento do campus um pouco mais cedo e caminhar até o Starbucks que ficava há duas quadras dali. Voltei vagarosamente apreciando a bebida e entrei meio desatento, divagando alguma bobagem. Ao ser alvejado pelos olhares de reprovação assim que bati meu cartão, me auto-fuzilei ao me lembrar da festa de despedida que faríamos pela manhã - que aliás, já estava em curso. Hoje era o último dia que Caroline Wazowski estava com a gente, uma das responsáveis pelo setor de pesquisa da minha ala. Não éramos os melhores amigos, mas ela era uma profissional competentíssima da qual nós sentiríamos falta, ela tinha conquistado um subsídio pra liderar uma equipe por alguns meses na Ucrânia, com um Dream Team de cientistas na área de genética, motivo esse pelo qual nos deixaria. Ela era querida por todos ali pela simpatia e a risada gostosa, mas nossa relação se tornara um pouco restrita ao profissional depois que eu acabei sabotando sem querer nosso curto relacionamento. Eu nem chamaria de relacionamento. Os óculos grandes, o cabelo vermelho - sim, ver me lho - o sorriso simpático e seu jeito tradicionalmente atraente eram um cartão de visitas pra qualquer pessoa que se sentisse bem ao lado de alguém que era puro carisma. Nós saímos algumas vezes para beber, pegar um cinema, ela acabou até indo em um show meu no Velvet's. Confesso que ela gostava mais de rock do que eu, talvez por isso eu tenha pedido desculpas tantas vezes por tê-la feito me aguentar cantando e arranhar a guitarra. No final da noite, fiquei bêbado e de certa forma "perdi" meus amigos pra ela. Mea culpa, eu era um pé no saco e ela era bem mais bonita e simpática. Aliás, eu ser um pé no saco foi o que fez com que eu a perdesse. Ora eu era uma compensação absurdamente exagerada de bom humor pra esconder a bagunça na que eu tinha na cabeça; ora eu era só um pé no saco. Ponto.
Caminhei por entre meus colegas, já rindo da minha cara de culpa, e a abracei. Ela tinha um sorriso nada surpreso revelando uma covinha tímida.
"Eu não tinha expectativas em você, pode ficar tranquilo."
Ainda bem que não. E ainda bem que a Srª. Morgan tinha ficado encarregada de trazer as delicatessen, diga-se de passagem. Alguém tinha que ter uma boa memória naquele departamento, e eu liderava o ranking dos piores.
Fiquei no meu canto degustando um bolinho, terminando meu café e observando a sala. As risadas, o bom humor, os jalecos brancos se misturando aos azuis, algo simbólico, metafórico. Todas aquelas pessoas amavam a vida, e amavam mais ainda a vida do próximo, abandonando logo cedo seus lares, certas vezes até tarde da noite, pra mostrar pra essas que elas tinham valor. Me sentia orgulhoso de que a hipocrisia não fizesse parte daquele grupo, esse amor pelas vidas alheias estendia-se aos colegas, não só aos pacientes. Assisti as pessoas abraçando-a, desejando a melhor sorte do mundo, nada que ela não merecesse, achava até que fosse pouco. Eu sentiria falta da risada dela.
Cya.
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