Era uma sensação curiosa ser o único cliente com um copo de uísque no meio da tarde num café tipicamente novaiorquino, uma dose de álcool entre tantos lates, capuccinos e mufins das outras mesas. Curiosa e que, ao mesmo tempo, não me incomodava. Ninguém se importaria com aquilo nem que o copo estivesse cheio de sangue. No mês de Janeiro toda aquela falsa preocupação com o próximo que acontece no mês de Dezembro, inspirada pelo Dia de Ação de Graças e em seguida o Natal, desaparecia. Todas as pessoas voltavam a se importar unicamente com as suas próprias vidas e os seus fracassos e infelicidades particulares. Aliás, elas voltavam a não se dar ao trabalho de se iludirem ou tentarem iludir uns aos outros de que se preocupavam com alguma coisa além delas mesmas. A sensação de estar sozinho num mundo onde ninguém se importa. Um mundo onde você se sente um lobo solitário numa floresta de aço e concreto, cercado por um enxame de milhões de seres de carne e smartphones, o tempo todo, e ainda assim solitário. Sorvi mais um gole generoso de uísque.
Fiz um sinal com a mão. Uma moça loira, com os cabelos compridos e finos e uma franja bem cortada, dos seus vinte e poucos anos, que provavelmente trabalhava ali pra pagar a faculdade, atendeu ao meu chamado e trouxe a garrafa de Jack Daniels imediatamente. Ela atendia com um sorriso tímido, embora simpático. Enquanto ela servia a bebida, pensei em fazer uma graça com uma das minhas músicas preferidas do AC/DC e cantar "She's Got The Jack". Projetei na minha mente e preferi me calar, além do próprio mr. Daniels, ela era o que eu tinha mais próximo de ser um amigo ali. No mínimo, era alguém que não se fazia indiferente à minha presença e eu poderia acabar arruinando isso se agisse feito um babaca. Antes que ela lançasse um movimento de retirada, pedi que deixasse a garrafa e retribuí o sorriso simpático que ela lançara inicialmente. Ela consentiu, mais simpática ainda dessa vez. Consegui interpretar um certo alívio no seu semblante ao perceber que não estava lidando com um bêbado. Quisera eu estar bêbado. Traguei mais um gole. Parei. Não... nada ainda.
Lancei um olhar por cima da garrafa. Resolvi me distrair olhando ao redor, analisando o ambiente do lugar privilegiado onde eu me encontrava, numa poltrona vermelha no fundo do Café. Era aconchegante, sofás e poltronas confortáveis em volta das mesas quadradas, alguns bistrôs de madeira, várias luminárias e lustres pelo lugar, um balcão com várias opções de doces e bolos e atrás desse as mágicas máquinas de café. Não era muito grande, mas cada pessoa que estava ali com certeza se sentia num espaço que a abraçava e acolhia. Nas paredes, alguns quadros de pontos turísticos clássicos e tradicionais da cidade e, perto de um pequeno palco vazio ao lado da porta onde à noite aconteciam alguns shows acústicos, havia uma coleção de quadros de algumas estrelas do Blues e do Jazz - extremamente familiares pra mim, em particular. Um deles me chamou a atenção mais do que os outros: era uma pintura de Robert Johnson tocando de costas. Ele era uma lenda do Blues e um dos meus prediletos, que outrora diziam ter vendido a alma ao Diabo pra conseguir ser tão bom com as cordas, e tocar de costas era uma artimanha para "esconder a influência do demônio" sobre seus dedos, segundo os conspiradores.
Já me sentindo um pouco zonzo, mirei novamente meu copo. Estava vazio. Virei a garrafa sobre ele e assisti as golfadas do líquido sujo encherem-no, enquanto a visão enchia-me de paz. Entorpecido pelo álcool, eu costumava romantizar um pouco menos sobre a vida. Afastar a sobriedade me afastava um pouco da poesia também, embora esse não fosse um dia comum. Ponderei sobre o álcool, a ideia sobre o demônio, sobre todas aquelas pessoas ali e comecei uma inevitável divagação sobre a vida. Nada daquilo tudo ia além do que reações químicas no meu cérebro, mas nós, seres humanos, arrogantes como nenhum outro ser, somos viciados à necessidade de ter controle sobre tudo. Álcool, drogas, doses cavalares de remédios... A necessidade de acelerar ou diminuir os processos químicos nos dava a falsa sensação de sermos deuses, manipularmo-nos como achávamos que deveríamos. Deuses, não. Quiçá pobres diabos.
O sino da porta me despertou do devaneio. Lancei um olhar em direção à entrada. Minha avó costumava dizer que falar sobre o demônio era nada mais do que um convite pra ele entrar. Ela só não esperava que além de convidá-lo a entrar, ele caminharia na minha direção e ainda diria: 'Que bom que você viu meu recado, Duncan. Achei que você não viria.'
O som da voz fez a paz do uísque desaparecer.
'Olá, Gail.' (...)
Cya.
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